O Testamento Público é Público?

Carlos Luiz Poisl
Tabelião aposentado
Novo Hamburgo/RS

 

Não. O testamento público não é público.
Os dicionários Aurélio e Houaiss registram 6 acepções para o adjetivo "público", além daquelas atribuídas à mesma palavra quando empregada como substantivo. Neste rápido estudo, interessam-nos duas delas:
1) Aurélio: público ... 2. relativo ou pertencente ao governo de um país: repartição pública, cargo público.
Houaiss: público ... 2 relativo ou pertencente ao governo de um país, estado, cidade, etc. (poder p.) (funcionário p.).
2) Aurélio: público ... 4. aberto a quaisquer pessoas: exposição pública; conferência pública; concurso público.
Houaiss: público ... 4. que é aberto a quaisquer pessoas (conferência p.) (audiência p.)
Qual dos dois significados é aplicável ao testamento lavrado por tabelião?
Em outros países a resposta viria fácil: o primeiro. O testamento público é público porque é oficial, emanado de uma autoridade pública, o escribano público ou notário público, dotado de fé pública, reconhecida pela autoridade pública, relativa ou pertencente ao governo. O segundo não seria aplicável: o testamento não é aberto a quaisquer pessoas.
Entre nós, porém, ficou difícil a distinção.
É justificável que se atribua, embora erroneamente, a segunda das acepções aos documentos públicos notariais, pela confusão que se faz com a publicidade registral. Ao registro público, sim, cabem simultaneamente os dois significados: o registro é público tanto por ser feito por uma autoridade oficial reconhecida pelo governo, como também por ser aberto a quaisquer pessoas. Como as duas funções, a notarial e a registral, andaram sempre juntas no Brasil, consideradas ambas dependências do Poder Judiciário, regidas pelas mesmas regras, exercidas também, inúmeras vezes, pela mesma pessoa, é muito difícil no entendimento comum fazer a distinção.
Como explicar que o registro feito por Antônio pode ser visto por qualquer pessoa, e já a escritura lavrada pelo mesmo Antônio não pode?
É até tolerável, por não se ver nisso prejuízo a alguém, que as escrituras públicas sem disposições testamentárias, isto é, os documentos escritos por tabelião no exercício de sua função pública, sejam acessíveis ao público em geral, além dos interessados no negócio ou das autoridades tributárias.
Há, porém, uma das espécies de escritura pública, o testamento, em que não se vê razão alguma para facultar o seu conhecimento a qualquer pessoa, seja estranho, seja herdeiro natural ou instituído, seja cônjuge. O testamento só interessa ao próprio testador. O documento sequer tem eficácia nem faz qualquer efeito no mundo jurídico enquanto viver o testador. Ele pode ser modificado em qualquer tempo ou pode nem mais existir quando morto o testador.
Assim, não há ninguém mais, além do testador, interessado no testamento. Se outra pessoa quer conhecê-lo, será por curiosidade, e curiosidade não se confunde com interesse. Pode haver também quem não seja só curioso, mas queira ver o testamento para saber se contém alguma disposição que não atenda às suas expectativas.
Neste último caso, há o grave risco de vir a ser o testador alvo de induzimento, ou pressão, ou até chantagem, com o objetivo de que modifique suas disposições de última vontade. E quanto mais idoso o testador, maior a possibilidade de não resistir a essas influências, por estar alquebrantado não só o seu vigor físico, mas, principalmente, a sua força de vontade.
É justificável, também, que algum magistrado incumbido de traçar normas sobre o exercício da função notarial, decida pela obrigatoriedade do fornecimento de certidão do testamento público a qualquer pessoa. O juiz, via de regra, não é versado em Direito Notarial. Sua formação profissional é voltada para o exercício da judicatura e não para uma atividade estranha a essa formação, como é a notarial, sendo comum também ele confundir os dois significados da palavra "público" no início mencionados.
Não é de acolher o argumento de que o testador, não querendo ver conhecidas por outrem as suas disposições, deve optar pelo testamento cerrado. São muitas as circunstâncias que levam à preferência do testamento público, inclusive por encerrar maior garantia, tanto de conservação, como de expressão fiel da vontade do testador, expressada, no caso, de viva voz e interpretada por um jurista com conhecimentos especializados, como o é o tabelião. O testador fará o testamento cerrado se contiver declarações que não deseja dar a conhecer nem às testemunhas presentes à solenidade de sua aprovação. Porém este é um outro assunto, não cabendo o seu desenvolvimento neste artigo.
Fora do Brasil, via de regra, nem sequer a escritura púbica em geral, não testamentária, pode ser conhecida por qualquer pessoa. Somente aos interessados no negócio, a exclusivo critério do tabelião, pode este fornecer cópia dela. Quanto ao testamento público, é norma geral a proibição de fornecer certidão a quem quer que seja, enquanto vivo o testador. A única exceção é quando a solicitação é feita pelo próprio testador ou por seu procurador com poderes específicos para tanto.
Em nosso país igual regramento demorará a ser instituído. Depende de maior disseminação do Direito Notarial e do fortalecimento da instituição notarial, atualmente muito enfraquecida.
Conclusão: o testamento público notarial não é público no sentido de poder ser conhecido por qualquer pessoa.
Adendo histórico:
Aprendi a distinguir o público da publicidade quando era jovem substituto em tabelionato e buscava conhecimentos junto ao saudoso tabelião José Luiz Duarte Marques, de Porto Alegre, a maior autoridade brasileira em Direito Notarial
A vedação do fornecimento de cópias do testamento público foi introduzida por ele no Anteprojeto de Lei Notarial de 1978, elaborado pelo Colégio Notarial do Brasil, e transplantada depois às Normas editadas pelo Corregedor do Tribunal da Justiça do Rio Grande do Sul.
A mesma proibição estava também em três outros anteprojetos de lei do CNB, posteriores..
Finalmente, embora incluída no respectivo Projeto, ela não obteve a merecida acolhida durante a sua tramitação no Congresso Nacional, deixando assim de figurar, lamentavelmente, na Lei nº 8.935, de 1994.
 

 
 
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